Seu Américo, um morto esquecido na gaveta
Por | Marco Leite
Em um momento que se denomina Canoas “Cidade do Avião” e artistas do estado parabenizam a cidade, o descaso, incompetência e negligência com os munícipes ficam cada vez mais latentes, onde nem os mortos são respeitados.
De acordo com informações de profissionais, um morto pode ficar vários anos congelados, depende muito da capacidade e da temperatura de uma câmera fria. Seria, talvez, a frieza do esquecimento. Em nossa cidade, temos um cidadão que já está a mais de um ano no necrotério do Hospital de Pronto Socorro de Canoas.
O Seu Américo passou toda a pandemia congelado em uma gaveta. Funcionários e colaboradores dizem que no caso do seu Américo, ele “explodiu” e escorre uma secreção dentro do morgue, onde os cadáveres são mantidos. O que tem dificultado a higienização do local, e que em função da pandemia a coisa piorou devido ao maior número de mortes. Afinal nesses lugares entram agentes funerários, familiares que precisam reconhecer parentes doentes (afinal não se morre só de Covid-19) e o odor é insuportável.
O certo é que Seu Américo está lá esquecido, enquanto se festeja a cidade com vultos de fora, os mortos são abandonados. É inimaginável, que hoje em dia em Canoas ainda ocorra uma coisa dessas.
O executivo alarda aos quatro ventos que está tudo ótimo na saúde. Mas cadê a humanidade? E isso envolve vários órgãos do governo. Seria impossível, em duas gestões, um cadáver passar despercebido.
Sejam mais humanos e, por favor, conduzam o Seu Américo para descansar em um campo santo.
O RELATO DOS REPRESENTANTES DA FAMÍLIA
A situação do Seu Américo é bem complicada, até seria simples de resolver se o Hospital Universitário tivesse a boa vontade de logo após o óbito informar a família, pois a assistência social sabia da existência da filha e não avisou a morte dele.
O que aconteceu?
Seu Américo faleceu, mas seus documentos e de seu patrimônio sumiram de dentro de sua residência. O que se tem de notícia é de que vizinhos e pessoas invadiram e tomaram conta da casa do seu Américo. Com isso foi preciso solicitar judicialmente o reconhecimento e a identificação do corpo. E isso, em função da pandemia, demorou muito. A família e seus representantes tiveram que forçar a IGP (Instituto Geral de Perícias) fizesse o trabalho de identificação do corpo, porque o Hospital Universitário criou todos os problemas possíveis e impossíveis para não agilizar a identificação. De acordo com informações, até um mês atrás o Seu Américo não tinha identificação, ou seja, ele ia acabar sendo sepultado como indigente. Pois, como todo e qualquer documento do seu Américo haviam sumido, não teria como provar que aquele corpo seria o dele.
E simplesmente o HU se negou a fazer qualquer identificação e demorou em responder no processo impetrado pelos familiares, com isso seu Américo foi ficando nas gavetas.
Foi então, que um juiz em um ato de diligência determinou que o IGP fizesse o trabalho, que não é seu e sim do hospital. O IGP faz as perícias quando envolve caso de violência, ou outro ilícito. E no caso do seu Américo, em tese, foi uma morte natural. Após um ano e quase quatro meses. Em meados de maio de 2021, foi feita a identificação do Seu Américo, mas o IGP não emitiu documento nenhum dele, fez apenas laudo de que o corpo que está no Hospital de Pronto Socorro de Canoas é do Seu Américo, através das informações que estão no Instituto de Dados de Identificação do Estado do RS.
Superada essa questão, também foi pedido que se fizesse a coleta do material genético do Seu Américo para fazer um exame de DNA, pois a filha quer ser reconhecida como primogênita. Ocorre que seu Américo nunca fez o registro, tratava a moça como filha, mas nunca deu a devida atenção para a questão documental. Então isso também foi solicitado pelos representantes. E assim foi pedido que se fizesse isso junto com o reconhecimento do corpo, já que o Hospital Universitário de Canoas se negou também a fazer a coleta do material genético. O que estranha é que o mesmo médico que recolheu o material genético para o IGP, foi o mesmo do HU, então isso já poderia ter sido feito há muito tempo, se o HU não tivesse sido tão negligente, tão incompetente e tão faltoso com a sua missão de atender os interesses dos munícipes de Canoas, ou seja, foi movida toda uma estrutura da Capital, para um procedimento simples, que é fazer a identificação de um corpo e fazer a coleta de um material genético para um exame de DNA. O médico assinou agora a declaração de óbito, dia 10 de junho de 2021, pois nem isso tinha sido feito até hoje, passado mais de um ano é que foram dar o documento declarando ser o Seu Américo, nem isso o HU e o HPSC haviam emitido.
Os representantes da filha do Seu Américo dizem não acreditar, que nossos hospitais não tenham a estrutura física para fazer esses exames, que hoje em dia são simples. Que o que está faltando é boa vontade de proceder essas demandas. Que no caso do seu Américo fica clara a falha.
O judiciário fez o seu papel, e está fazendo, o laboratório que irá fazer para o DNA é de São Leopoldo, e com essa demora sofrem todos, a família, a filha que não consegue sepultar o pai. Que lhe foi tirado, até agora, o direito básico de reconhecimento da paternidade. Pois na certidão de nascimento dela não consta o nome do pai, que todos sabem ser Seu Américo.
Então diante de toda essa situação o Seu Américo continua sem ter identidade, onde todos sabem aquele corpo ser dele, mas ele não tem documento de identidade nenhum a não ser o laudo do IGP e por conta disso o Cartório de Registro das pessoas naturais de Canoas não quis fazer a certidão de óbito do Seu Américo.
Existe a declaração de óbito emitida pelo Hospital em 10 de junho de 2021, mais de um ano depois. Mais uma falha do hospital que sabia que a filha do Seu Américo já tinha ido diversas vezes à procura de uma solução para o descaso com seu pai.
Agora, mesmo com a declaração, o Cartório exige uma ordem judicial para dar o atestado de óbito do Seu Américo, já que o falecido não possui um documento de identidade. Os representantes da família do Seu Américo entraram com uma liminar no dia 05 de julho de 2021 e agora esperam pelo juiz por um despacho. Com isso, o seu Américo só será sepultado após sair sua certidão de óbito e que não se tem ainda, por que não se tem um documento de identidade e só com uma determinação judicial a certidão de óbito será lavrada. Isso não é por falta de boa vontade da família, mas sim por conta de uma longa negligência e burocracia.